Enquanto
escrevo esse texto venta bastante e faz frio, muito frio nesta noite da cidade
de Salvador, igualmente como na noite anterior. A chuva ameaça cair e somente
uma xícara de café consegue me aquecer do vento que assobia de leve e quase de
maneira fantasmagórica por entre as frestas da janela do meu quarto. Acredito
que o produtor e multi-instrumentista André Virgo Araújo não poderia ter
escolhido um dia melhor para lançar o primeiro registro do Amor Cianeto, seu
mais recente projeto, que tem uma atmosfera sombria e que não se desprende de
sensações verdadeiras.
Intitulado
de Cinzas, esse primeiro disco do Amor Cianeto é de uma banda de um homem só,
onde o músico executa todos os instrumentos que você escuta nele, assim como as
camadas de vozes e, óbvio, as texturas de guitarra que chamam a atenção e dão
um brilho extra às faixas. Vale ressaltar também que esta é mais uma investida
que atesta o talento e a percepção musical requintada do homem por trás desse
trabalho e a maneira como ele consegue assimilar e colocar em prática o que
escuta ao seu redor. Sempre há tempo para descobrir o que é que a Bahia tem.
O EP
abre com a sua faixa título, com clima soturno e de sonoridade oitentista, mas
que traz um certo balanço e provoca uma vontade estranha de dançar. A guitarra
grudenta e o teclado idem fazendo algumas texturas cristalizadas marcam
presença de maneira forte e que se intensificam no seu êxtase dentro do seu
minuto final, se estendendo de maneira bonita e com uma mudança suave da melodia
da canção e do vocal até o seu fade out. A palavra “feliz” repetida várias
vezes em seu termino ganha um tom tristonho em decorrência da história do seu
texto. Trilha singela e profunda. Em Ela me Falou, canção mais longa do
trabalho, começa com uma marcação de bumbo e bastante teclado, alguns pontuais
e outros atmosféricos, mas que preparam o campo para a temática nublada, com
doses de psicose e pensamentos de sangue, para, na sequência explodir com os
demais instrumentos com bastante dramaticidade e intensidade. Com Corais, o
disco ganha uma sequência interessante. Esta é mais animada, começando
diferenciada com punch certeiro de rock e refrão de bom potencial, as texturas
na música passeiam por ela de uma maneira que faz a faixa ganhar mais vida.
O
som constante de um sonar cai muito bem com a letra psicodélica, onde o destino
dos protagonistas será a sua conversão em corais “em pedras debaixo do cais” de
uma ilha. Diria que é uma música fabulosa. Refém surge como uma balada, com
temática de despedida de alguém que partiu para uma outra jornada, sem ser mais
refém da vida e do tempo (por que não?). Aqui, o solo de guitarra é um ponto
alto da faixa e dá para imaginar as palmas acompanhando o sintetizador durante
o seu refrão. O Etilista fecha o disco como um um tipo de valsa sombria com boa
sonoridade de guitarra, cozinha tranquila e teclados pontuais. A temática de um
personagem suicida sendo observado por uma testemunha ocular, que narra com
detalhes o fato de forma minuciosa e com palavras bem escolhidas, amarra mais a
canção e pode deixar os mais sensíveis em prantos. Um bom desfecho para um
trabalho de sonoridade acima da média.
Amor
Cianeto é sombrio, mas também é muito acessível. As temáticas das letras versam
sobre paixão, amor, morte, psicose, depressão e suicídio, mas em meio a isso,
há muita dose de sentimento verdadeiro e de certa positividade, sendo assim uma
mistura difícil de se escrever e que foi muito bem-feita nesta empreitada. A
música se sobressai muito nesse disco, as melodias são bem estruturadas e
chamam a atenção para as nuances e as mudanças sutis em boa parte das canções.
Cada instrumento ganha destaque nos momentos certos e isso é um bom mérito do
André Virgo Araújo. Do lado de fora da janela escuto o que parece ser passos,
mas é só a chuva voltando a cair devagar. Este EP pode se tratar de um amor
venenoso, mas certamente vai fazer bem aos ouvidos.
Conheça
o som da Amor Cianeto.
*Matéria originalmente publicada em 24/06/2016.