Já
falei inúmeras vezes por aqui sobre o meu gosto em ir ao Pelourinho para ver
eventos musicais. Gosto do lugar e lamento o fato de haver uma divulgação muito
negativa sobre a sua imagem nos meios de comunicação e nas rodas de conversa
que acabam propagando o receio das pessoas em ir no centro histórico e
aproveitar uma boa intervenção cultural. Sim, ele ainda merece mais cuidado,
mas não é esse lugar horrível onde a “noite é escura e cheia de terrores” como
dizem por aí. Não mesmo! O Pelô é sempre um local onde se pode ver toda uma
diversidade cultural acontecendo simultaneamente, principalmente quando o
assunto é música. Há sempre com o que se surpreender nesse quesito!
E
neste final de semana não foi diferente, foi a vez do Festival Soterorock
passar por lá e encontrar o seu lar em duas noites consecutivas (09/09 e 10/09)
no Buk Porão, uma das três casas que recebe shows de rock autoral da cidade que
o evento alcançou. Para quem não conhece, o Buk Porão é literalmente um porão,
é quente, pé direito baixo, com um espaço reduzido (agora um pouco mais
espaçoso por conta de uma recente, e ótima, reforma), onde público e banda
transpiram juntos, compartilhando uma experiência diferente e real do que é um
inferninho no melhor sentido rock’n roll da palavra, liberando sentimentos
canalizados por este gênero musical em cada um que se propõe a ir até lá e se
divertir. É uma força estranha e boa que só quem toca, ou entra na vibração dos
shows de lá que pode dizer exatamente o que é. Volto a insistir em afirmar que
todas as bandas da Bahia precisam tocar no Buk Porão pelo menos uma vez na
vida.
E
não foi diferente nesta ocasião. Confesso que estava curioso por ver essa etapa
do festival, por um lado pelas bandas que iriam se apresentar (a sua maioria eu
ainda não conhecia ao vivo) e por outro lado por ver essa influência do lugar
sobre as pessoas. Boa parte desses conjuntos vieram do interior e foi também
uma boa oportunidade de ver o que se tem feito além das fronteiras de Salvador
juntamente com os grupos daqui.
A
terceira data do festival começou com as pessoas chegando devagar e, aos
poucos, se acomodando pelo ambiente que agora possui uma melhor circulação. O
início das atividades começou em sua pontualidade com a Vende-$e, quarteto de
punk e hard core formado por integrantes presentes na cena há muito tempo, só
que espalhados em outras bandas dessa vertente. Havia muita história em cima do
palco naquele momento sendo carregada por cada um do grupo e a energia por
fazer o que se gosta não foi perdida ao longo dos anos. Isso foi bem
perceptível em suas letras e nas composições desta investida. A performance dos
rapazes foi bem agitada, com os quatro sem perder o ritmo aplicado a cada
canção que tocava e a cada mensagem que era passada em suas letras. A
inquietude do seu vocalista, André Borges, deu mais gás a noite se deslocando
de ponta a ponta e criando uma boa relação com uma das pilastras do porão.
Esquentou a noite na medida certa. Foi bom vê-los atuando de perto novamente
depois de tanto tempo. Com um pouco de atraso por conta de um imprevisto que
foi logo contornado, a Universo Variante veio direto de Alagoinhas mostrar o
seu rock-indie-folk-valsa-samba para quem já circulava em maior número na casa.
Foi bem interessante vê-los em sua segunda aparição na capital, com um som
diferente do conjunto anterior, executando canções autorais, de boa influência
de Stones, com uma leve pegada Supergrass (da fase Diamond Hoo Haa) e guitarras
que remeteu bastante ao Wilco (no período da turnê do seu disco Sky Blue Sky).
A banda toda tem um carisma forte, e foram bem comunicativos.
Começaram
passando o som, sentiram a vibe do momento e emendaram logo o seu repertório
com uma música atrás da outra sem perder o fôlego e animando ainda mais o
ambiente. A performance peculiar do seu guitarrista, Felipe Souza, e o domínio
de todos da banda sobre suas composições chamaram a atenção e surpreendeu muita
gente que não os conhecia. Não foram poucos os aplausos. Encerrando a sequência
de apresentações, a Kalmia foi ao palco apresentar o seu crust para o festival.
Já havia visto o trio há mais ou menos um ano atrás e o que posso afirmar é que
eles estão mais bem entrosados. É bom que se frise que a banda é uma atuante
presente na cena local, com uma boa frequência de shows e com um EP já lançado.
A rapidez e a brutalidade do seu som, aliada aos vocais guturais do Diogo
Carvalho, marcaram de maneira positiva a sua performance, que teve o ponto alto
logo no início com a sua versão para Uma Teoria Duvidosa, da Funcionaface, e em
Jovens Negros em Extinção e Exército de Mendigos. A grande maioria que estava
presente acompanhou empolgada o repertório da banda e foi calorosa ao saudar
cada um deles no final do seu show. Merecido!
Após
as bandas, teve um pouco mais de bebida, foto com o povo para confraternizar e ainda
muita troca de ideias entre quem ficou no local. Saber um pouco mais sobre a
cena fora da capital, mais especificamente em Alagoinhas, através dos novos
amigos de lá, estava em uma das várias pautas. No caminho de volta para o lar
houve a comprovação de que Salvador tem ladeira e ruas que podem te deixar
praticamente na porta de casa, mesmo se uma delas seja tão sombria ao ponto de
arrepiar o condutor do automóvel. De fato, por onde passamos só faltava sair
uma assombração de dentro de um bueiro.
Chuva, empolgação e zumbidos.
Sob
uma forte chuva que caiu no início da noite, a quarta data do festival começou
também de maneira pontual e prometia grandes apresentações neste que foi o seu
segundo momento no Buk Porão. Mais três bandas, duas delas do interior, deram
as caras e atenderam muito bem as expectativas de quem foi assisti-las de
perto. Direto de Camaçari, abrindo a sequência de shows, a 4ª Ligação deu um
bom start na programação mesmo que de maneira tímida. Com um punk rock que
transita entre o pop e o grunge, o quarteto mostrou boa desenvoltura nas
canções, mesmo transparecendo a necessidade de ter mais presença de palco. Isso
talvez por conta do ainda curto tempo de atividade. O setlist teve bons
momentos, eles souberam usar os covers que tocaram a seu favor, se divertiram e
divertiu muita gente na casa. Valeu a pena ter visto os rapazes.
Em seguida, se
apresentou a Olhos Para o Infinito, trio que vem se destacando na cena pela
sonoridade que aplica em seus shows e pelas boas composições próprias. O trio
quase que traz o Buk Porão abaixo com seu grunge-new metal de muita técnica e
riffs pegajosos, o impacto das suas composições é forte em que escuta e eles as
tocaram em alto em bom som, ecoando pelo Pelô. Surpreendeu parte da audiência
que não os conhecia e arrancou aplausos calorosos dela. Uma moça, do casal de
gringos que chegou a tempo das suas quatro últimas músicas do setlist, gritava
empolgada “bravo, bravo, bravo” ao final de cada uma delas. Boa presença de
palco, bom contato com o público e a participação de Suzi Almeida (Invena) nos
vocais do cover de No Ordinary Love, da Sade, também se destacaram, assim como
Paranoia e Aurora. Bravo!
De
Alagoinhas e encerrando a noite, a Organoclorados levou um ritmo diferente para
o palco do festival, enriquecendo mais a noite. Com vinte e seis anos de
estrada, o quinteto executou canções do seu primeiro disco e imprimiu uma
sonoridade mais anos oitenta à noite, inspirada em bandas inglesas desse
período e da década seguinte, e com bastante entrosamento entre os seus
integrantes. A performance do grupo foi crescendo a cada música tocada com
segurança e, interessantemente, aumentando a sua velocidade e empolgação. Empolgação
muito bem expressada e de maneira espontânea pelo seu tecladista, que não parou
um segundo sequer na frente do seu instrumento (ele passou várias vezes de
raspão pela parede do palco, enquanto dançava).
Isso foi percebido por quem
estava os acompanhando naquele momento e embarcou junto no fluxo. Labirinto
Tirano foi um dos destaques do seu repertório e a épica Segunda-Feira
Ressaqueada, com seu solo de guitarra épico, levantou de vez os ânimos no porão
provocando um pedido de bis que foi atendido com uma boa versão de Break on
Through (The Doors) e mais duas outras canções. Essa foi a prova do rock
lavando a alma das pessoas que estavam ali presentes. A Organoclorados foi um
bom fio condutor dessa sensação.
Ao
fim, sem mais chuva alguma, as bandas se confraternizaram com mais troca de
ideias e contatos, fazendo boas conexões e novas amizades, colhendo já bons
frutos de uma boa noite de rock. Mais uma vez a diversidade dentro deste gênero deu o tom destes dois dias do
festival no Pelourinho. Esse pode até parecer um argumento batido por aqui, mas
é a mais pura verdade em torno das bandas e artistas que compõem a grade desse evento.
Na volta para a cidade baixa, um “assustado com nada” condutor do carro que nos
guiava deixava bem claro o seu medo em ser repreendido por taxistas. Até um
saco vazio levantado por um vento forte era motivo para ele ficar em alerta.
Enfim, passada as cenas de quase comédia, era só curtir o bom zumbido no ouvido
no conforto de casa.
*Matéria originalmente publicada em 13/09/2016.