Ainda
me recordo do dia em que, lá para os idos do ano de 1995/1996, em
uma conversa sobre rock’n roll no intervalo da escola, o meu amigo
de sala, Alan, largou: “O meu primo toca numa banda de se fuder de
punk rock, chamada Maria Bacana, o som deles é massa”. Devolvi
para ele dizendo: “Porra, bicho, conheço o som dos caras, é bem
bom, mesmo. Como eu faço para ver um ensaio deles?”. Na cara dura
fiz o pedido para ele, que por sua fez combinou comigo de já no
domingo seguinte conferir o encontro dos rapazes. Já havia assistido
uma apresentação do trio e ela me agradou muito (abrindo para o
Ira!, no Hotel Pelourinho), bastante energia no palco em um
repertório de cerca de trinta minutos, e gostaria de vê-los
ensaiando, para ver como a dinâmica deles funcionava dentro de um
estúdio. Nesse caso numa garagem!
Cheguei
a ir a três deles. No primeiro, havia tanta gente, que parecia um
show. Cerca de umas vinte pessoas, além da banda e seus
instrumentos, meio que se apertavam entre sofás, estantes e armários
velhos (e a alguma poeira também) dentro de um pequeno porém
espaçoso quarto no fundo da garagem de um parente do baterista
Marcelo, aqui mesmo na cidade baixa. Em meio a um pouco de ruído
vindo dos amplificadores e goles de água, eles tocaram com segurança
todas as músicas que tinham na época como se estivessem realmente
em uma apresentação, cortando a calmaria de uma tarde silenciosa do
bairro de Roma com cada uma de suas músicas sendo cantadas
discretamente por quem estava lá. Esses foram pontos a serem levados
em consideração sobre o potencial da banda. Nos outros dois, faltou
energia no bairro e não teve ensaio!
Dava
para perceber que havia algo diferente ali! Em companhia de algumas
das bandas baianas dos anos 1990, a Maria Bacana foi uma das mais
ativas na cena naquela época e, consequentemente, uma das que mais
teve projeção nacional. Em meio a toda aquela efervescência de
grupos de rock surgidos em todo canto do Brasil, a competência do
trio garantiu para a MB um contrato com o selo do Dado Villa-Lobos, o
Rock It! para lançar o seu primeiro disco. O disco foi gravado, mas
demorou de sair. Os rapazes fizeram mais shows, tocaram em festivais
em todo o território nacional, fizeram apresentações em lugares
maiores aqui em Salvador, mas o lançamento do primeiro trabalho do
grupo não se concretizava e isso foi criando uma tensão ansiosa nos
três. O que é bem natural de acontecer quando se grava um disco,
quando se finaliza o conceito de arte do mesmo e não é possível de
colocá-lo na praça no dia seguinte. Quem já passou por isso, pode
entender melhor o que estou querendo dizer.
Depois
de cerca de um ano pronto, enfim o disco homônimo saiu e eles
trabalharam o quanto puderam em cima dele. Não sei o quanto eles o
fizeram, mas no processo a banda encerrou as atividades e quando
recebi a notícia pensei algo como “putz, caberia mais um disco
fácil na discografia dos rapazes”. As vezes me pegava pensando
como a banda se sairia em um segundo trabalho e só me restou ficar
atento aos movimentos musicais dos rapazes. Os anos foram passando, o
André L.R. Mendes (vocal/guitarra) gravou uma vasta discografia de
qualidade, com a maioria dos discos de sua carreira solo documentada
aqui no site e me cruzei com o LeLê (baixo) e Marcelo (bateria)
inúmeras vezes em uma livraria que trabalhei em um shopping daqui da
cidade. Então eis que após quase vinte anos do lançamento do
primeiro disco, uma breve aparição dos três juntos em um palco
sinalizou uma reunião.
Esse
rápido encontro gerou um ensaio para ver como as músicas antigas
soariam depois de tanto tempo e para ver como estariam os rapazes ali
entre eles mesmos em termos de química e entrosamento. Desse ensaio
veio mais um outro e mais outro, até surgir aquele que preparou o
primeiro show da Maria Bacana com instrumentos plugados em
praticamente duas décadas e daí para os encontros para mostrar e
treinar novas composições, e então para uma aparição tímida
aqui ou ali para mostrar as novas criações para os admiradores. Não
demorou muito e o anúncio do disco novo surgiu.
A
notícia de que A Vida Boa que Tem os Dias que Brincam Leves chegaria
foi recebida com entusiasmo por muita gente. O desenvolvimento da
feitura das composições e do disco foi intencionalmente calmo e
longínquo, sem pressa e sem agonia, no tempo de cada um dos
integrantes e da própria obra, para justamente maturar as músicas,
trabalhar arranjos, insights e novas ideias. Começar um álbum
partindo do zero não é fácil, demanda tempo e a expectativa
interna, se não for bem administrada, pode comprometer o seu
processo de criação e registro. Gravado nos estúdios WR, aos
cuidados do produtor Apu Tude, o cd chegou em 2018 com quatorze
faixas feitas de maneira primorosa.
O
A Vida Boa que tem os Dias que Brincam Leves começa empolgante com a
faixa Volta, uma canção com bastante personalidade, fincada no som
característico do trio, um power pop veloz com uma base de baixo e
bateria bem segura, guitarra que preenche os espaços necessários e
refrão marcante com backing vocals de presença doce. Em Telefonema,
os rapazes desaceleram um pouco mais, porém sem perder o punch, para
falar sobre as coisas boas da vida que estão nas coisas mais simples
do dia a dia, tendo um bom solo com nuances de violão neste trecho.
Na sequência, No Ônibus tem um começo peculiar, apenas bateria e
uma linha de baixo construída de maneira diferente e interessante,
que prepara a chegada dos vocais e da guitarra. Há aqui bons riffs e
a presença de um som em reverso, como uma textura, funcionando
acertadamente no fundo da música.
Ego
e Poeira é uma composição de letra e melodia fortes, com uma
mensagem que convida o ouvinte a refletir sobre os gestos rudes que
muitas vezes trocamos uns com os outros, a troco de nada diante do
nosso tamanho em relação a imensidão do cosmos. Isso com um rock
firme e direto como trilha. Palmeiras ao Vento é um punk rock
descontraído de versos idem e com um refrão grudento. O Luxo é um
rock mais vagaroso, maduro, que critica o luxo quanto postura de
vida. Em Nosso Filme, a banda volta a velocidade com uma faixa de
duração mais rápida do que as anteriores, casando bem com a
urgência espontânea do conteúdo do seu texto.
O
rockão volta em Novinha, composição com um punk “pra frente”,
incluindo um xilofone pontuando alguns momentos da faixa dentro e
fora do refrão, além de terminá-la com bom humor, usando uma
batida de funk no seu encerramento. Registro tem uma atmosfera sonora
de beira de estrada na sua parte introdutória, para depois cair no
rock encorpado que completa o ambiente digno de bater cabeça
enquanto é escutada. A empolgação se mantêm em Sereias, faixa
mais acelerada, com microfonias e mudanças de andamento notáveis e
bem conduzidas, novamente os backing vocals ganham destaque nesse
ponto. Certamente, uma das ótimas passagens do disco!
Dando
continuidade a obra, O Barulho das Portas abre com uma batida
solitária da bateria para seguir com a mesma verve das duas faixas
anteriores, com direito a bastante guitarra e Ai de Mim se não Fosse
Você estreia um momento acústico da banda sem ser de um jeito
introspectivo. Os Dias que Brincam Leves surge na mesma pegada
acústica, porém volta para as guitarras distorcidas com baixo
pulsante e bateria pomposa, com uma letra diferente e bonita sobre a
relação a dois. Fechando o cd, Raiva Ventania faz justiça ao seu
nome e traz uma energia encontrada em bandas dos anos 1990, típica
da própria Maria Bacana, encerrando a sequência de músicas de
maneira empolgante.
A
Vida Boa que Tem os Dias que Brincam Leves poderia ter vindo há
vinte anos atrás? Poderia! Mas veio na hora certa? Veio! Acho até
que a banda não deveu nada ao que eles poderiam ter feito no já
distante inicio do ano 2000. A quantidade de sons novos e antigos
quem escutaram, as experiências vividas, a prática nos seus
instrumentos nessas duas décadas não programadas de pausa das
atividades da Maria Bacana, garantiram que o disco fosse executado de
maneira mais segura. A banda soa mais madura em seu som e em suas
letras, e há uma identidade presente aqui que o trio havia
registrado em sua estreia. Não quero dizer que esta seja uma
continuação do ponto de onde eles pararam, eles não se repetiram,
é mais uma questão de personalidade. É algo como aconteceu com o
Soundgarden quando lançou o King Animal não sei quantos anos depois
do Down on the Upside. É uma coisa sincera. Tão certo assim, que o
disco é requintado, possuindo várias camadas de guitarra, backing
vocals bem construídos e percussões inseridas nos momentos certos.
As decisões para as músicas aqui foram acertadas. O resultado é um
disco genuíno de rock, que valeu a pena esperar! Um segundo disco
que chegou em seu tempo.
Ouça
em: www.mariabacana.com