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Todo dia é dia de rock. Por Leo Cima.



Aconteceu, no final de semana em que se celebrou o dia mundial do rock, o festival Rock Concha 2019. Evento que, neste ano, comemorou trinta anos da sua primeira edição. Houve um hiato de um pouco mais de vinte anos nas suas atividades, porém, há quase uma década, a festa vem acontecendo de maneira assídua a cada ano e já pode ser considerada como certa no calendário cultural da cidade.

Para esta ocasião, a produção do evento apostou em um lineup que propôs fugir de repetir nomes escalados nos anos anteriores, se mantendo atrativo neste sentido e oferecendo ao seu público bandas relevantes na cena nacional e local, com algumas delas há bastante tempo sem vir à Salvador, outras lançando trabalho novo, ou comemorando décadas de estrada. A falta de roadies durante algumas apresentações foi percebida em dois momentos, nos shows da Drearylands e da Alquímea, mas nada que comprometesse o desempenho de ambas no palco!

No sábado, quem abriu o evento foi a Drearylands. Comemorando vinte anos de carreira, o quinteto fez uma apresentação segura e competente, passando, em seu repertório, pelos seus três discos lançados ao longo dessas duas décadas de atuação, com composições bem elaboradas sendo executadas de maneira inspirada pelos seus integrantes. Os seus singles mais recentes, Redemption (2018) e Efígie (2019), certamente foram pontos altos da sua performance, que se encerrou com a participação especial do seu baterista original. Em seguida, a Malefactor fez um show igualmente competente. Com uma execução impecável de suas músicas, o grupo destacou o seu mais recente trabalho, o ótimo Sixth Legion, além de incluir canções de seus discos anteriores. O primor de seu desempenho no palco também passa pela sua longa carreira, que certamente lhe credencia o fato de poder estar bem entrosada e digna de poder chegar bem em sua sonoridade em cima do palco. Um som veloz, com guitarras cortantes e cozinha pesadíssima chegou certo pelas arquibancadas da Concha Acústica.

Depois deles, talvez a mais aguardada atração do evento. Ao som do hino da campanha do tricampeonado mundial de futebol, conquistado pela seleção brasileira em 1970, o Ratos de Porão entrou no palco envolto à excitação do público, que vibrava com a presença dos paulistanos em terras soteropolitanas, ao mesmo tempo em que, a sua maioria, homenageava o presidente da república com o coro: "Hey, Bolsonaro, vai tomar no cú". Com o ambiente devidamente calibrado, o RDP começou a tirar o atraso do tempo que não se apresentava por aqui. A sua última apresentação em Salvador, antes dessa, foi há mais de dez anos atrás, há quinze anos para ser mais exato (naquela mesma noite do último e conturbado show do Rodox, no Rock in Rio Café, lembra?), então toda a explosão sonora dialogou bem com o público presente. O repertório completamente fincado no seu disco Brasil, que completa 30 anos neste 2019 (razão desta turnê), foi cantado em uníssono do início ao fim e demonstrou o quanto está atual em um momento sombrio da condição social e política do país. Ainda se recuperando de uma pneumonia, o João Gordo lamentou não estar 100% para entregar uma performance mais digna, mas o fato foi que ele e seus companheiros se sairam bem demais. A imensa e interminável roda de pogo foi um bom indicativo disso. Após o bis, o conjunto se despediu ao som de Reunião de Bacanas (Se Gritar Pega Ladrão), uma referencia mais que adequada para quem o recado foi dado durante o show.

Encerrando a primeira noite, o Camisa de Vênus fez um show de personalidade, com uma proposta de repertório corajosa e longe de ser óbvia. Quem foi para o festival esperando ver o velho Camisa de Vênus, pode ter estranhado a sua abordagem em seu setlist. Reformulado, contando apenas com o Marcelo Nova e o Robério Santana da formação original, o quinteto chegou sem querer ser cover de si mesmo e procurou apontar o seu caminho para frente, mirando nas novas possibilidades e ampliando o alcançe de sua musica. Em uma banda tão longeva e tão bem munida de hits como essa, é difícil deixar de fora da apresentação os seus clássicos, as composições que fizeram a sua história e que muita gente quer ouvir. Mas, de uma maneira inquieta e fora de zona de conforto, houve espaço para musicas novas, quatro delas extraídas do seu Dançando na Lua (2016). Uma decisão interessante, dentro de uma condição de "jogo já ganho", na qual eles poderiam jogar para a galera e partirem para o abraço. Em meio a isso, o show divertiu a banda e a uma audiência com faixa etária diversificada e empolgada.

Começando os trabalhos no domingo, a Alquímea fez seu rock flower power ecoar pela Concha Acústica. O competente power trio fez a sua apresentação com musicas autorais e com espaço para alguns covers. A veia setentista e virtuosa dos rapazes deu ao final de tarde um tom adequado para o que estava prestes a vir e deixou o público aquecido com bons riffs de guitarra e um diálogo entre baixo e bateria de encher os olhos. Depois deles, o Pedro Pondé se apresentou com o show do seu primeiro EP solo, o Licença. Aqui, ele mostrou todas as músicas deste seu mais recente trabalho e também canções dos repertórios das suas antigas bandas, a Scambo e O Círculo, mostrando a sua versatilidade como artista. A presença de palco do cantor e compositor continua forte e a sua comunicação com o público permanece bem sintonizada. Esse aspecto caloroso do seu perfil é bastante percebido na disposição da sua banda pelo palco, na qual cada integrante se encontrou distribuído um bem próximo do outro, o que deixou a energia da performance do conjunto mais acesa, de certa maneira. Essas coisas fazem uma grande diferença na apresentação de um grupo. Além de versátil, o Pedro Pondé também é generoso: no meio do seu show, ele convidou ao palco a banda Rubatosis para ela tocar uma música própria. Os rapazes demonstraram um certo nervosismo, natural nessas ocasiões, porém se saíram bem. Isso não é novidade em seus shows, quem já assistiu a algumas apresentações dele ao longo de sua carreira, o viu fazendo isso algumas vezes. Um belo gesto! De volta a ação, Pondé ainda pôde fazer mais uma e deixar o público preparado para a atração seguinte.

Encerrando a jornada rocker do festival, o Planet Hemp entrou no palco com raiva e sangue nos olhos e fez o que sabe fazer de melhor: hard core, hip-hop e um discurso adequadamente violento, ácido e cru para a classe política nacional. Colocando o dedo na ferida e abrindo mais caminho nela com a ponta da unha até chegar no osso. Nos primeiros momentos, as luzes verdes tomaram conta de todo o lugar junto aos primeiros acordes da banda em Legalize Já! O Marcelo D2, usando uma espécie de balaclava no rosto, surgiu quase que ao mesmo tempo que o BNegão e desde então não pararam de versar as letras extremamente atuais escritas pelos cariocas até que o show terminasse. Dali em diante, banda e audiência não pararam um segundo sequer para pegar fôlego, com o sexteto investindo o seu peso com uma canção forte atrás da outra, fazendo um bom passeio pela sua curta, porém significativa discografia. Foi um caminho tomado através de uma jornada de luzes, imagens projetadas no telão em alta frequência, fumaça, cenas que só se vê estando bem próximo a uma roda de pogo (mas a uma distância suficiente para manter o seu copo de cerveja em segurança) e som em alto e bom volume. Uma beleza! O resultado final foi extasiante, com Mantenha o Respeito e com o povo subindo as escadarias como se estivesse saído de um banho de mar revigorante. O Planet Hemp mostrou que ainda é importante e necessário na cena mainstream nacional, mas creio que, para além de shows acima da média, este seria o momento certo para um disco de inéditas deles. Sei que cada um ali atua em seus projetos pessoais em paralelo à banda, que cada um incomoda a quem tem que incomodar a sua maneira. Mas um trabalho novo dos caras certamente faria um barulho com alcance e impacto muito maior do que já vemos.

Ao fim, o Rock Concha na edição especial de seus trinta anos entregou o que propôs e fez uma bela festa, em um final de semana comemorativo para o rock e suas ricas vertentes. É claro que o gênero não se reduz a apenas uma data e que este dia seja o real marco mais importante desta música, mas é bom ser lembrado, isso tem sua importância. E sim, dia do rock é todo dia e se formos bater o martelo para uma data, vamos parar na década de 1950 e, talvez, se vacilar, nos anos 1940. Mas aí já é papo para outra história.


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